Voo #51 Uma breve história de Hécate
Para marcar o mês de agosto, quando muitos neopagãos célebram Hécate, a deusa da bruxaria.
Este texto foi originalmente publicado no meu falecido Medium, há alguns anos. Aqui ele veio com complementos, revisões e uma leve mudança na estrutura.
Hécate, a deusa das encruzilhadas
O mito de Hécate conta que ela é uma deusa muito antiga. Seu nome também é uma pista disso: faz referência a palavra grega “hekaton”, que significa distante. Em alguns mitos, é filha de Nyx, a deusa da noite e uma das primeiras divindades a emergir do Caos primordial. Em outras versões, é filha de Asteria, deusa das estrelas, e Perses, o titã da destruição. Mas de qualquer forma, seu mito conta que ela já existia há muito tempo quando Zeus tomou o poder.
Hécate possuía o domínio da fertilidade na terra, nos céus e nos mares. Alguns dos seus epítetos, ou seja, das suas qualidades, ainda fazem relação com esses três reinos. Por isso é uma deusa com três cabeças: porque olha para os caminhos de todos esses reinos ao mesmo tempo. E por isso, também, é relacionada as encruzilhas (em especial em y, onde três caminhos se encontram) e aos lugares de passagens, como portas e fronteiras.
Hesíodo, na Teogonia, conta que, quando Zeus derrotou Cronos na guerra chamada de Titanomaquia, ele distribuiu os poderes dos deuses, ficando com o domínio dos céus, dando a terra e os mares a Posseidon e o submundo a Hades. Mas Hécate já dominava esses três reinos bem antes dos olimpianos. Como ela lutou ao seu lado, renegando os titãs, ele reconheceu o poder que ela possuía, concedeu ainda mais poder a ela e permitiu que continuasse com seu trânsito entre os reinos. Os versos do poema dizem que Hécate estava presente desde o começo da criação e que que Zeus a honrava Hécate acima de todos os outros deuses.
O culto à Hécate
O que esses mitos ilustram é um culto muito antigo, bem anterior ao culto dos deuses olimpianos. Apesar de aparecer nos textos clássicos como aliada de Zeus, ela tem uma mitologia muito mais escassa do que os deuses mais novos e não há muitos vestígios do seu culto.
A principal hipótese é que Hécate seja divindade originária da Tessália, uma área ao norte de Atenas, fazendo divisa com a Macedônia. Nessa região havia uma deusa lunar chamada Brimó, que depois seria associada como qualidades de Hécate e Ártemis. Considerada uma região pouco civilizada, os textos atenienses sempre se referem a essa região como selvagem e inóspita, o que permaneceu no imaginário grego sobre essas deusas.
Hoje se sabe que Hécate tinha altares e capelas em santuários de outros deuses, como no templo de Deméter em Elêusis, na região de Atenas. Mas foram descobertos poucos templos dedicados só à ela. O mais famoso fica em Lagina, na Turquia. Para alguns, isso é um indício de que, na verdade, é uma divindade originária da Ásia Menor, que teria absorvido a deusa Enódia, essa sim originária da Tessália e ligada às encruzilhadas.
Deusa da lua e do submundo
Caro Baroja, um importante antropólogo que estudou as bruxas de Euskal Erria (País Vasco), classifica Hécate como deusa ctônica-lunar e ligada à magia erótica — ou seja, a magia para conquista amorosa. Outras deusas que também tem essa função são Selene, Perséfone e Ártemis, todas divindades ligadas à lua, à noite e que simbolizam o feminino misterioso. Ártemis e Hécate são divindades que se confundem em determinados períodos e regiões da Grécia Antiga, possuindo iconografias e citações semelhantes.
No livro Las Brujas y Su Mundo, Baroja coloca que essas divindades podem ser deusas virgens lunares, deusas do amor misterioso ou deusas mães ligadas à fertilidade e, por consequência, ao sexo. Ele entende que os sistemas de crenças europeus tendem a dividir o mundo em Celeste (masculino) oposto a Terrestre (feminino); e solar (masculino) oposto à lunar (feminino). Logo, essas deusas trariam atributos duplamente femininos (ctônico-lunar).
Apesar de homens também procurarem pela feitiçaria amorosa, as fontes escritas gregas ilustram esses atos mais frequentemente ligado às mulheres e sempre invocando as deusas ctônico-lunares. Dentro dessa visão, a feitiçaria é um ato desviante da norma social, e, para Baroja, praticada por pessoas que conhecem o amor passional, mas não tem o sentimento de amor ao próximo. Por isso não há nenhuma norma moral que as impeça de praticar magia.
Podemos, ainda, dizer que existem traços das deusas ctônico-lunares, como Hécate, nos mitos da Caçada Noturna, também estudados por Baroja, mas destrinchados por Carlo Ginzburg no livro História Noturna. Durante parte da Idade Média e da Era Moderna, existia uma crença na Europa Central de um grupo de seres mágicos e espíritos, liderados por uma entidade feminina, cavalgando à noite buscando comida e bebida nas casas, e que convidavam pessoas a se juntarem a eles. Para Ginzburg, esse mito está na origem do que depois foi entendido como sabá das bruxas.
O historiador não se refere diretamente à Hécate, mas coloca como guias da caçada as deusas Vênus, Abondia, Holda, Herodia, Diana e Ártemis. As hipóteses do autor é que a caçada parte de mitos e práticas rituais eurasiáticas, que talvez tenham uma fonte originária comum. Quando vemos Ártemis nessa lista, podemos também conjecturar que as crenças gregas relacionadas a essas deusas lunares sobreviveram no mito da caçada. Hécate, além de deusa da magia, também era a deusa dos fantasmas, almas perdidas e daimones ( espécie de gênio ou anjo da guarda que acompanhava os humanos) e por isso pode também ter sido associada a esse mito.
A teoria de Ginzburg hoje é questionada e o próprio autor acredita que exagerou um pouco nas conjecturas, mas de qualquer forma ele consegue perceber que há uma reverência e uma permanência grandes de deusas lunares do imaginário europeu, até mesmo depois da cristianização.
Portanto, Hécate é essa divindade de mistério lunar e feminino, ligada à práticas de feitiçaria, necromancia e de feitiçaria amorosa. Uma deusa com poucos templos, sem rituais públicos, que ajudou a criar o protótipo do que é feitiçaria como algo misterioso e escondido.
As feiticeiras gregas
As bruxas mais famosas da mitologia grega, Circe e Medeia, tinham uma profunda ligação familiar com Hécate. Em alguns mitos, Circe é considerada sua filha e Medeia, sua sobrinha. Mas na história de Jasão e os Argonautas, Medeia aparece evocando Hécate em suas magias.
Elas duas são uma espécie de protótipo do estereótipo da feiticeira europeia, um arquétipo que ajudou a alimentar toda a imagem que o ocidente criou nos séculos seguintes. E ambas faziam seus feitiços sob os auspícios da deusa.
A feitiçaria não era algo bem visto nem na Grécia, nem em Roma. As feiticeiras não eram as responsáveis pelo culto dos deuses e não tinham nenhuma função oficial como os sacerdotes. Viviam muitas vezes à margem da sociedade, consultadas quando necessário e cobravam pelos seus serviços. As práticas de feitiçaria eram bastante temidas e chegaram a ser legalmente proibidas.
Em parte, esse medo vinha dos deuses invocados pelas feiticeiras. Hades, Perséfone, as Erínias* e a própria Hécate. Como eram deuses relacionados ao mundo dos mortos e às práticas necromânticas, eram bastante temidos e pouco invocado. Seus cultos ficavam restritos, raramente tinham templos, as oferendas separadas dos demais deuses. E esse temor também se estendia às feiticeiras.
Interpretações contemporâneas
Em uma visão mais contemporânea da bruxaria, tanto Hécate quanto a imagem da feiticeira são ressignificadas para algo positivo, mas isso é bastante recente e acontece a partir da Wicca, fundada nos anos 1950, e principalmente com os movimentos femininas da década de 1960 em diante. Eu quis aqui passar um pouco dessa dimensão histórica da deusa, pensando em como ela era vista e entendida no tempo do seu culto.
É inegável a sua dimensão de poder feminino, mas é importante entender que a feitiçaria nas sociedades europeias sempre foi um tabu, principalmente na sua relação com os mortos. Mesmo antes do Cristianismo, era mal vista e as feiticeiras não tinham um lugar social de privilégio, pelo contrário. Ressignificações são válidas e bem-vindas, mas não podemos deixar de lado essas dimensões históricas.
*Erínias, chamadas pelos romanos de Fúrias, eram as três divindades que puniam as pessoas que cometiam crimes contra a ordem natural do mundo. Eram deusas da terra, representadas com asas e tinham o poder de enlouquecer aqueles que desejavam punir. Para não ofendê-las, geralmente eram chamadas de “as gentis”. Seu mito mais conhecido é o ciclo da Casa de Atreu, onde punem Orestes por ter matado a mãe, Klintemnestra.
Referências Bibliográficas:
Las Brujas y Su Mundo
Caro Baroja — Alianza Editorial
História Noturna
Carlo Ginzburg — Companhia das Letras
Hécate: Um Estudo Inicial
Joana Varella — Universidade de Lisboa
Atenas: Magia, Maldição e Morte
Maria Regina Cândido — Revista Phoinix
As Núpcias de Cadmo e Harmonia
Roberto Calasso - Companhia das Letras
Theoi Project - Hekate
(hoje e sempre o melhor site de mitologia grega da internet)
Inês, que delícia ler seu texto. Essa percepção feminina da mulher em três possibilidades é algo reverberando em muitas sociedades. A encruzilhada não me escapa… quero perguntar por que a teoria do Carlo está questionada, aliás, questionar faz parte da nossa compreensão científica, mas de quem são os textos que dialogam com o dele?