Voo #23 - O Livro de São Cipriano
Compartilhando um pouco sobre a minha dissertação de mestrado
Da Mandinga à Macumba: a trajetória do Livro de São Cipriano no Brasil
Minha dissertação de mestrado já está disponível para leitura. E aproveitando esse momento, decidi falar um pouco dela por aqui.
A pesquisa foi sobre o temido e amado Livro de São Cipriano, para mim o maior best-seller do Brasil. E eu defendi o mestrado em março pelo programa de Pós-Graduação em História da PUC-SP. Comecei a trabalhar durante a especialização, em 2018, e conclui no final de 2021. Então foram cerca de 4 anos me dedicando a ela.
Eu pesquisei edições do livro, reportagens e anúncios de jornal e muita bibliografia sobre magia escrita, feitiçaria portuguesa e brasileira, História do Brasil, história dos livros, Umbanda e macumba. E cheguei a seguinte conclusão:
O Livro de São Cipriano é o maior fenômeno editorial brasileiro
Ele tem mais de 40 edições diferentes e é publicado no Brasil há mais de 100 anos.
Então, por mais que as pessoas digam que têm medo ou que querem passar longe, ele vende. E vende bem.
E é essa relação dele com o mercado editorial que fez ser uma publicação tão antiga e tão popular. Você mesmo já deve ter dado de cara com algum exemplar dele por aí, ou até ter um em casa.
Mas o que é o livro de São Cipriano?
O São Cipriano é um grimório. Ou seja, um manual de magia. Histórias e escritos sobre São Cipriano sempre circularam, desde o século 4 d.C, mas ele só começa a parecer o que a gente conhece hoje lá pelo século 17. Como livro mesmo, é organizado apenas no século 19.
O livro é um grande compilado de feitiços, orações, exorcismos e instruções de cartomancia e quiromancia, com um forte tom católico. Há maneiras de invocar e criar demônios e histórias de pacto, mas a maior parte dos feitiços e exorcismos é feito na força dos santos. Além disso, ele tem um tom bastante evangelizador, cheio de avisos de que praticar magia é errado e que o caminho da salvação está na Igreja.
Por isso Cipriano se salvou: ele foi um feiticeiro e sacerdote pagão, mas que se converteu graças à ação da virgem Justina e, por isso, foi salvo. Mas o engraçado é que ele nunca perdeu 100% seus poderes mágicos. A diferença é que agora eles são mais poderosos, porque além de tudo ele é santo.
Busca por tesouros encantados
O Livro de São Cipriano é herdeiro de uma longa tradição de magia na Europa, a da busca por tesouros encantados. Grimórios famosos, como a Chave de Salomão e o Picatrix, também são representantes dessa linha, que vem aparecendo nos textos sobre magia desde os Papiros Mágicos Greco-Egípcios dos séculos 4 e 5 d.C.
Já por volta do século 17 existem folhetos e livros espanhóis e portugueses que trazem essa ligação de Cipriano com os tesouros. Mas ele só será organizado como livro no formato que a gente conhece (chamado de códice) no século 19.
Na minha pesquisa, usei como fontes dois livros portugueses para me ajudarem a traçar essa história: O Grande Livro de São Cipriano: o Thesouro do Feiticeiro (publicado em Lisboa, por volta de 1890) e O Tesouro Particular do Feiticeiro (publicado no Porto, por volta de 1900). Mas com certeza existiram edições anteriores a essas, que não chegaram até nós.
As publicações brasileiras
Eu encontrei pistas de que o livro já circulava no Brasil desde a década de 1870. Há anúncios nos jornais do Rio de Janeiro dessas edições, publicadas por filiais de editoras portuguesas. Por isso, acredito que sejam edições importadas de Portugal.
No começo do século 20, por volta da década de 1910, ele já era famoso por aqui. Uma das citações mais conhecidas é a de João do Rio, no livro As Religiões do Rio. Segundo o jornalista, todo o conhecimento dos macumbeiros cariocas era retirado do Livro de São Cipriano, o que demonstra a sua popularidade, que foi usada por vários escritores como sinônimo de magia e feitiço.
A grande responsável por esse sucesso todo foi a Livraria Quaresma. A editora e livraria carioca foi uma das maiores da primeira metade do século 20, e pioneira na publicação de manuais, livros de receita e livros infantis, vendidos bem baratinhos.
O Cipriano entrou na categoria dos manuais. Era relativamente barato e foi se popularizando, até que várias outras editoras também começaram a fazer suas versões. A Quaresma chega a lançar um livro derivado do Cipriano, O Livro da Bruxa, assinado por um de seus autores de cartas de amor, Don Juan de Botafogo.
Mas ele vai ficar popular mesmo alguns anos mais à frente. A partir do que pesquisei, acredito que o grande ponto de virada esteja entre os anos 1940 e 1950. Nesse período a indústria editorial brasileira passou por várias dificuldades: censura do Estado Novo, falta de material por causa da Segunda Guerra, impostos e falta de incentivo. Ao mesmo tempo, é quando ela começa a se profissionalizar, cria as primeiras entidades de classe e dá um salto de qualidade técnica.
E é nessa época que surgem duas editoras, a Eco e a Espiritualista/Aurora, dedicadas a livros de magia, esotéricos e de Umbanda. Elas vão fazer várias versões do Cipriano, com diferentes autores, e colocarem adições brasileiras, como a Oração da Cabra Preta - uma prece que, segundo Mario de Andrade e Câmara Cascudo, nasce no Catimbó do Rio Grande do Norte.
A Espiritualista é responsável, nessa época, por publicar um dos principais autores do São Cipriano e dos livros de magia brasileiros: N.A. Molina. Até hoje não se sabe quem era esse autor, ou se era apenas um pseudônimo. Mas qualquer loja de artigos religiosos ou livraria hoje em dia ainda vende o Cipriano de Molina, hoje publicado pela Multilivros.
Além disso, a partir dos anos 1950, a população brasileira fica mais escolarizada e alfabetizada, as cidades ficam maiores, e todo esse contexto impulsiona a venda do Livro de São Cipriano. Não só porque tem mais público leitor, mas também porque as pessoas sempre procuraram soluções na magia e na feitiçaria para resolverem seus problemas, e todo o processo de mudança da população gerou muitas questões para serem resolvidas. E nada melhor para isso do que um manual de magia.
Mas os feitiços funcionam mesmo?
Aí vai de cada um, né? Tem uma parte dos praticantes de magia, especialmente das escolas europeias, que diz que o Cipriano é um apanhado de bobagens. Entre os wiccanos, eu já vi opiniões diferentes: alguns dizem que é lixo, outros dizem que é tão poderoso que poucos conseguem usar. E entre os cristãos ele é sempre o livro amaldiçoado do demônio.
O que eu tenho certeza é de que ele é um compilado muito interessante de práticas mágicas e religiosas do catolicismo popular, especialmente desse lado herético que passa a ser feitiçaria. Seja pelos feitiços que já vem de Portugal, seja pelos elementos brasileiros que ele vai absorvendo, é uma fonte maravilhosa para entender as mudanças e as misturas religiosas que foram acontecendo em cima dessa obra e desse personagem.
Este é um resumo do que eu descobri. Agora com o texto publicado, vou compartilhar aqui na newsletter e nas redes ainda mais sobre o São Cipriano. Se você quiser (e tiver paciência) de ler toda a minha dissertação, pode fazer o download aqui, no repositório da PUC-SP.
Notícias
Última “bruxa” de Salem é inocentada após 329 anos
Ainda na onda da absolvição, a última das bruxas de Salém foi finalmente perdoada. Elizabeth Johnson nunca chegou a ser executada, mas continuou com o “nome sujo” nos últimos 300 anos. Assim como as outras mulheres acusadas de bruxaria na Nova Inglaterra, ela foi perdoada.
É interessante ver como esse movimento tem ganhado força pelo mundo, na esteira dos movimentos feministas mais recentes. É interessante, também, do ponto de vista da memória: mulheres que entraram para a história como bruxas, agora voltando a ser assunto justamente porque foram injustiçadas.
Indicações
Druida: A Última Morte, de Eduardo Kasse
Para o pessoal que curte paganismo e história dos celtas, este projeto do Eduardo Kasse é um prato cheio. A ficção histórica vai se passar na Britânia do século I d.C. e terá os grandes sacerdotes dos povos celtas como protagonistas. O projeto está em financiamento coletivo no Catarse e já bateu 62% da meta.
Pelintra, de Bruno Brunelli
Ainda nos projetos de financiamento coletivo, quem ainda não apoiou o Pelintra, a hora é agora! A HQ sobre a vida do Zé Pelintra está entrando na última semana de campanha e acabou de bater a meta, então vai acontecer. Fica a sugestão.
Sankofa: a História dos Afro-Curitibanos, de Raphaela Corsi (Karmaleão)
Essa é mais uma dica de ficção histórica, que reconstrói a memória de alguns personagens negros de Curitiba que foram esquecidos pelo tempo. Eu gosto muito do trabalhado da Rapha e achei muito legal a proposta de transformar essas memórias em uma HQ.
Curso História da Bruxaria
Lembrando que teremos nosso primeiro curso de História da Bruxaria. As inscrições estão abertas e vão até dia 01 de julho. O curso será online via Sympla e as aulas ficarão gravadas.