VOO #56 - Combater vampiros com a ancestralidade africana
Ou uma leitura do filme Pecadores (2025)
Uma coisa que me irrita em terror estadunidense é que metade dos problemas deles seriam resolvidos com um pouco de pólvora e um maço de vela, tipo espíritos de confederados, poltergeist e casa mal assombrada.
Mas de vez em quando vem alguma coisa diferente, e o que veio dessa vez foi Pecadores, um dos melhores filmes que eu assisti este ano. Além de ser bastante criativo, ele traz a metáfora do vampiro, um mito essencialmente branco, para falar de colonialismo e escravidão.
É uma ideia de gênio do diretor e roteirista Ryan Coogler, o mesmo de Pantera Negra. Mas ele foi bem além disso. O combate a essa praga europeia está na ancestralidade negra, que é apresentada no filme de várias formas, como a espiritualidade, a noção de comunidade e, principalmente, a música.
Depois de ver o filme fiquei pensando em algumas camadas que ele traz sobre isso, e decidi vir dividir aqui. A partir de agora vai ter spoilers. Então, se você ainda não viu, sugiro ficar por aqui e voltar depois.
A magia negra como salvadora
Uma das personagens mais marcantes do filme para mim foi Annie, que podemos chamar de curandeira. É explícito o seu papel de especialista religiosa que mantém as suas práticas de origens africanas e isso fica claro nos fios de conta no pescoço, na caracterização da cabana, no altar na entrada sua casa e, principalmente, quando ela manipula as mojo bags.
O mojo bag é o patuá do voodoo e hoodoo norte-americanos. É parecido com o que fazemos aqui, um saquinho com ervas, orações, raízes, ossos etc, magicamente preparado para trazer proteção física, espiritual e outras coisas. Mais para a frente no filme, é o mojo bag que protege Smoke de ser mordido, (fazendo às vezes do que na tradição cristã seria o papel da cruz).
O mais interessante dessa personagem é que ela subverte a representação tradicional da feitiçaria negra nos filmes de terror. Normalmente a figura do negro aparece ou como quem executa o malefício, ou como o pactário com o demônio. No imaginário estadunidense, a religiosidade mais próxima da ancestralidade africana é primitiva e suja, como a gente já cansou de ver em filmes, desenhos, hqs.
Mas Annie é representada como uma curandeira e cozinheira, que ajuda a sua comunidade. É a primeira a entender o ataque dos vampiros e usar o que sabe para proteger os outros dessa invasão. Ela avisa, quando os vampiros chegam, que não conhece bem essa assombração já que o vampiro é um monstro branco e europeu. Mas faz o que pode e graças a ela a seu mojo bag que duas pessoas conseguem sobreviver, Smoke e Samuel.
Também é com Annie uma representação muito bonita dos espíritos. Quando Smoke morre, eles se encontram e Annie já está com a filha no colo. As duas estão vestidas de branco, que além de um signo de pureza é a cor dos mortos em algumas tradições africanas. E nenhum dos três vai para o céu ou o inferno: eles simplesmente se encontram no mundo dos espíritos, uma passagem natural, sem dor ou sofrimento.
E essa representação positiva de uma ancestralidade africana (que eu identifiquei mais próxima das tradições iorubás, mas posso estar errada) me marcou bastante. O subtexto mostra para nós que nenhum dos aspectos sobrenaturais de Pecadores opera na lógica cristã. A cruz não faz efeito nos vampiros, não há céu nem inferno para os mortos. O cristianismo aparece como uma religião deslocada, algo que tenta combater um demônio imaginário, mas na hora do vamos ver são as crenças de matriz africana que fazem efeito no combate.
Música e corpo
Além dessa representação positiva de Annie e da religiosidade afro-diaspórica, outra representação que foge aos estereótipos é a de Sammie.
Ele ecoa a lenda de Robert Smith, o músico de blues que teria feito um pacto com o diabo numa encruzilhada, para ser o melhor guitarrista do mundo. Essa história já foi recontada mil vezes e sempre reforça a ideia do negro como detentor do pacto.
Mas aqui o Diabo - ou seja, o vampiro - é branco. E Sammie não invoca o capeta com a sua música, mas sim os espíritos ancestrais. De novo, a mesma lógica: o diabo existe para quem opera na lógica cristã, como pai de Sammie, que é o pastor da comunidade. Para quem não se converte aos valores dos brancos, a música representa outra coisa.
E essa outra coisa é colocada como o poder que alguns músicos especiais têm de conectar passado, presente e futuro pela arte. Como o talento e a paixão permitem se conectar com a ancestralidade, e Sammie é um desses músicos. A sua música conecta os espíritos de todos os tempos às pessoas do presente.
Se pensarmos na visão de tempo iorubá, ela não é uma linha reta. Tudo já aconteceu, todas as histórias já foram contadas e nossos destinos se encaixam nesse tempo cíclico, que retorna sempre a si mesmo. Ao representar espíritos do passado e do presente juntos, a cena traz a ideia de que tudo está interligado.
Essa cena também me fez pensar na importância do corpo e da dança para a conexão com os espíritos e deuses. Aqui no Brasil sabemos bem disso: nas nossas religiosidades afro-diaspóricas é o corpo que conecta com a ancestralidade e as divindades. Cada orixá e cada guia têm sua dança, sua comida, sua postura corporal, suas cores e ervas. E para mim é isso que a dança e a música querem representar em Pecadores: a conexão com a sua ancestralidade é feita pela arte, que por sua vez é executada pelo corpo.
No finalzinho, é a guitarra de Sammie que o salva de ser morto pelo vampiro branco, assim como o mojo bag de Annie protegeu Smoke. O que salvou Sammie não foi a insistência do seu pai para que ele deixasse o blues de lado, mas justamente as suas heranças ancestrais: a música e a espiritualidade. E é muito significativo que um filme com essa mensagem seja um sucesso numa época em que os EUA vivem fortes tensões sociais e raciais como agora.
Como eu falei, o filme propõe várias leituras, e aqui eu trouxe uma delas. Não tenho referências para falar muito sobre voodoo e práticas mágicas estadunidenses, mas se alguém entender sobre, fica aqui o convite para colaborar nos comentários.
Fica ainda a sugestão de assistir ao vídeo do Entre Planos com uma análise ótima, que destacou outras camadas de interpretação e conta a história de Robert Smith.
Este texto não tem referências diretas, mas faz um tempo que um livro tem influenciado muito a minha visão sobre toda a cultura afro-diaspórica (música, dança, religião, comida, arte visual etc) que é Memórias Ancoradas em Corpos Negros, da profa. Maria Antonietta Antonacci. É um livro denso, mas quem tiver com fôlego, vale a pena.
Aulão Zé Pelintra e a Malandragem
E por falar em música, corpo e representações negras, no próximo dia 07/07, dia de Seu Zé, vamos ter um aulão com o Pontos Ilustrados sobre nossos malandros.
A aula será via Goole Meet e o valor é R$80,00. A gravação fica disponível por 90 dias e você ainda ganha o PDF com a primeira parte da HQ Zé Pelintra.
Uma análise mais profunda da representação do hoodoo no filme.
https://wildhunt.org/2025/06/mojo-music-and-magic-in-ryan-cooglers-sinners.html
Que análise foda! Eu senti tantas coisas nesse filme, viajei por tantos mundos, mas ficou só no sentir. Agora te lendo tudo foi se encaixando ✨🙏🏽